Por ter sido Educador toda a minha vida profissional e porque me identifico com este artigo de opinião, aconselho a sua leitura.
A.M.
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Terça-feira, 14 Jan
In: SOL / SAPO
Os filhos e os cães
Somos bons a parecer bons e a verdade é que é mais querido
resgatar um gatinho da rua do que levar o almoço a um idoso que não consegue
descer as escadas do prédio.
O Henrique Raposo está farto de escrever sobre isto. Sobre o
facto de vivermos tempos em que se dá maior proteção, atenção e cuidado aos
animais domésticos do que às crianças, especialmente e no caso dele a crianças
especiais como as autistas. A sociedade é mais sensível aos direitos dos
animais do que aos direitos dos idosos ou de pessoas com deficiência.
Vivemos melhor com as dificuldades dos outros do que com o
mau estar dos animais: um idoso que viva abandonado num 5.º andar numa selva de
prédios ou que é mantido num hospital porque não tem condições de ser enviado
para casa e tratar-se sozinho, não agita automaticamente grupos ativistas nem
gera indignação coletiva espontânea. Uma criança que precisa de cuidados
especiais e todos os dias é largada na escola porque não tem quem cuide dela em
casa, é quase visto como uma privilegiada. Navegamos em paz no nosso rio onde
estas margens são cada vez maiores. Os animais, esses, fazem correr lágrimas.
Os animais têm cada vez mais protetores e as pessoas mais frágeis cada vez
menos.
Mas há outro problema: o perigo de se ter animais. Qualquer
dono de um cão ou de um gato é fiscalizado pelos vizinhos, é insultado na rua
caso se atreva a dar uma palmada no dorso do cão ou é denunciado às autoridades
se alguém desconfie que ele não passeou durante um dia. Esta dinâmica começou
há alguns anos com as crianças e deu no que deu. A sociedade achou que a
autoridade sobre as crianças tinha de ser dividida com o Estado, que os pais
não chegam para tomar conta dos filhos. Na dúvida, os pais são incompetentes.
As regras têm vindo a apertar e quem se atreva a dar um corretivo num filho
adolescente, o proíba de fazer tatuagens ou deixe uma criança de 10 anos ir
jogar futebol da rua ao entardecer, arrisca-se a ter de prestar contas ao
Estado, à justiça e é dos pais o ónus da prova de que é um educador capaz.
Com os cães é pior, os delatores são mais ferozes e os
protetores mais irracionais. Um cão pode ladrar uma noite inteira que o prédio
tolera, um bebé que berre a noite inteira porque tem cólicas é intolerável e os
pais podem ser chamados pelo Estado a justificar a razões da insónia. Esta
dinâmica invertida, em que se consegue incluir no mesmo texto a proteção de
crianças, de idosos ou de pessoas com necessidades especiais e os direitos dos
cães, diz quase tudo sobre a sociedade que se está a criar. Dizer o óbvio, ou
seja, que os animais devem ser bem tratados, mas não são pessoas nem precisam
de ser tratados como pessoas, é quase um sacrilégio.
Vivemos em crise de emoções e sensações. Aquilo que mais
comove são as fotografias e os reels fofinhos e não sofrimento humano. Uma foca
sufocada por uma rede de pescadores é viral, uma pessoa em cadeira de rodas que
não consiga subir para o comboio é política. Somos bons a parecer bons e a
verdade é que é mais querido resgatar um gatinho da rua do que levar o almoço a
um idoso que não consegue descer as escadas do prédio. Os cães ainda não são
reconhecidos como filhos dos donos, mas cada vez é mais difícil conseguir ter
um cão e não o querer tratar como um filho.
Inês Teotónia Pereira