Era
proibido caçar, e muito menos no decurso de uma operação, mas que dava vontade
de apanhar um bichinho daqueles, lá isso dava! “Umm… que bifes tão deliciosos se fazem destes animais”, pensava
António enquanto caminhavam. Depois de se terem afastado razoavelmente dos
locais pré-estabelecidos, montaram um perímetro de segurança e jantaram antes
de escurecer completamente. Depois, já com a noite bem marcada, voltaram por outro caminho até
ao alvo, onde se instalaram como acontecia sempre para dormir. O pessoal fazia
um círculo e a segurança era feita em cruz, por quartos de sentinela, de duas
em duas horas, obrigatoriamente, quem tinha medo não dormia e desta forma
reforçava a vigilância. O dispositivo para a emboscada só seria montado de
madrugada, ao romper da aurora.
Então
o Cambalhotas, dedicado ‘guarda-costas (por sua livre e espontânea vontade)’ do furriel - que não tinha direito a
tal mordomia -, disse-lhe:
–
Furriel, vou fazer-lhe uma palhota para não apanhar cacimbo!
O
graduado olhou para o soldado meio distraído, sorriu e nem respondeu. Mas, no
centro do círculo, já o soldado abraça uma quantidade de capim, amarrando-o em
cima com algumas ervas secas que apanhara e, depois, de joelhos, foi furando o
cone de palha rente ao chão, por fim, uma vez lá dentro, rebolou-se ora para um lado, ora
para o outro, até achar que a cama estava concluída; ficou uma casota
cónica parecida com a dos índios. António, agradeceu e depois de deitado apreciou
a palhota e o que se observava de dentro dizendo para si: “O rapaz tem jeito, embora mais
pequena que a dos índios é, contudo, abrigada e até acolhedora! E que linda e serena
noite de lua cheia está…” - reparava, agora mais descontraído. Embalado
por um certo bem-estar que, apesar de tudo, sentia, deixou-se levar ao sabor dos
pensamentos e lá estava ele, deitado de costas, dentro da novíssima habitação de
altíssimo padrão ecológico a ver, pela ombreira da porta em forma de triângulo, a Lua, enorme com uma dimensão e uma cor de um amarelo forte afogueado (talvez uma superlua), com sulcos
negros a marcarem a sua face e parecia querer dizer-lhe: ‘Boa noite! Podes
dormir descansado, porque esta noite velarei por ti!’; e, envolta por um manto salpicado
por mil, um milhão, triliões de estrelas cintilantes, maioritariamente
azuis, mas, aqui e além algumas vermelhas, outras amarelas e, até lhe pareceu,
ver algumas, poucas, verdes. Uma verdadeira rainha num firmamento negro como
breu; esmagava-o com o poder da sua energia, não lhe deixando outra alternativa
que não fosse a de a observar e contemplar. Lá estavam, ele e os seus camaradas, à espera dos turras. Contudo, desejoso de que eles não aparecessem, fascinado
pela força e beleza com que a natureza se expressava, às tantas, lá longe, vindo das profundezas
do sertão angolano, ouviu-se um suave e agradabilíssimo rufar de tambores,
naquela noite que, para ele, já se tornara encantada!
E continuando o militar a divagar
nos seus pensamentos, que brotavam sem cessar, ocupando-lhe o cérebro, pensou
que talvez o inimigo se tivesse decidido juntar-se à magia daquele momento e os
tivesse querido presentear com mais outro extraordinário espetáculo - certamente
um batuque - continuando deitado de costas, desejou que aquele momento nunca mais terminasse e deixou-se
extasiar, hipnotizado por tão especial noite e entrou em meditação
contemplativa:
“Isto é a África no seu
misterioso esplendor noturno. Decerto o inimigo não nos irá estragar este
momento poético, quase divino! Sim divino. Porque a natureza é, mas aqui mais
acentuadamente, algo que se mistura com o sagrado. A pureza da força selvagem
africana, a sua beleza natural e em grande parte intocada é esmagadora. Toca-nos profundamente, de tal forma que nos eleva a um estado de espírito que
só tem equivalência com o que sentimos quando nos entregamos à contemplação
profunda e, enquanto religiosos, à conversa com Deus - à oração. “É por isto que
acredito, que o inimigo por aqui não passará, hoje”.
E assim se deixou ficar a observar a paisagem noturna,
selvagem e grandiosa que, de tão bela e pacífica, lhe parecia irreal… Continuou
de olhos abertos sentindo uma leveza de espírito e uma sensação de paz e de
prazer infinitos, até que às tantas se voltou para lado esquerdo e adormeceu
profundamente.
De
manhã um raio de sol da cor do ouro, entrou pelo triângulo que fazia de porta à
improvisada cabana, banhando-lhe o rosto enchendo-o de luz acordo-o.
António
enquanto se espreguiçava encheu os pulmões de ar, ar perfumado pelo orvalho da
manhã que incorporava os cheiros do capim e da pacaça[1] que por
ali abundavam.
Este
jovem, acabara de registar mais um dos fortes sentidos africanos - o cheiro -,
lembrou-se então das emoções extraordinárias que sentira na noite que ora terminara
e pensou que, apesar da guerra, era um homem com sorte por ter vivido mais
aquela inolvidável experiência.
De facto, ele, nunca como naquela noite, tinha
interagido tão fortemente com a natureza. Todos os seus sentidos: a visão, o olfato,
o ouvido e o taco estiveram em alerta constante, numa permanente simbiose com a
natureza, onde sentia, sem margem para dúvidas, ter sido, ele, o mais
beneficiado.
Depois
de tantas e tão deliciosas emoções, o furriel mandou os homens posicionarem-se para
a emboscada, e, lá, de rabo para o ar e de cabeça encostada ao chão, olhos e
ouvidos perscrutadores aguardaram, em alta tensão, a eventual passagem do
inimigo.
Como
o inimigo não aparecera até às doze horas, o furriel disse ao homem do rádio para
comunicar com o alferes a pedir instruções. Recebeu ordem para se retirar e juntar-se
ao segundo pelotão - também em operação nas redondezas -, no caminho, recordou novamente
a noite anterior, já então com uma ponta de nostalgia. E, de repente, lembrou-se, surpreendido, que o inimigo não tinha passado por lá - embora
a probabilidade de eles passarem por aquele lugar fosse sempre inferior a
cinquenta por cento, disse para si: “O importante é que eles por aqui não passaram.
Mas nem podiam ter passado, depois de uma noite tão mágica e com a Lua a
fazer-nos de sentinela!”.
Imagem: Internet
[1] Um
ruminante que é metade boi e metade cavalo-boi na cabeça e cavalo nos quartos
traseiros.
Descrito no ‘Dicionário Editora’, Porto Editora Lda.
6ª edição, como: «mamífero ruminante, bovídeo bufalino, africano, frequente em
Angola, que é caça muito apreciada».