| Imagem: Internet |
Há momentos na vida em que o chamamento do berço se impõe com uma força mansa, quase telúrica. Connosco, comigo e com a Teresa, não foi diferente. Num desses dias em que a vontade fala mais alto, apanhámos o intercidades e seguimos rumo à Invicta. Cidade de charme antigo e renovado. Quem diria, há apenas seis anos, que iríamos alugar um T1 no Bairro da Sé, ali a meio caminho entre São Bento e a Ribeira, na rua Mouzinho da Silveira! Então, tudo parecia gasto, decrépito, até malcheiroso. E agora? Agora resplandece renovado, reconstruído com respeito pela traça original. Um espanto. Parabéns, tripeiros; podeis orgulhar-vos e erguer a cabeça perante quem vos quiser medir forças — cá dentro ou lá fora, carago.
Mas hoje não venho falar desse Porto lavado e elegante, que já nos acolheu tantas vezes que perdemos a conta.
Dormimos bem. E, na manhã seguinte, pelas dez, subimos até à vetusta estação de São Bento. Linda, imponente, com aqueles painéis de azulejos que contam a história do Norte como quem folheia um livro de pedra e barro. Vinte mil azulejos que deixam turistas ofegantes, telemóveis erguidos, disparando freneticamente num “vem-se-te-avias” fotográfico que quase faz sorrir quem assiste.
Já sabíamos que a linha acompanha o Vale do Ave. A ideia das paisagens, do rio que serpenteia e repousa em Guimarães, seguindo depois até Vila do Conde, deixou-nos a imaginar cenários idílicos. Guardámos esses cenários como quem guarda uma promessa.
A composição esperava-nos: limpa, espaçosa, silenciosa. As janelas amplas deixavam a luz entrar com generosidade. Só os bancos denunciavam o peso dos anos — encostos puídos, assentos cansados, marcados por quem neles viajou. Pormenores. As placas eletrónicas que anunciam paragens e saídas são uma pequena maravilha para lisboetas habituados às velharias suburbanas. E a linha… suave, sem aquele “pouca-terra” da memória ferroviária. O comboio deslizava com uma serenidade quase inesperada — para espanto de quem gosta de embirrar com a CP.
A paisagem, vista da janela, fugia num compasso ritmado, quase hipnótico. Deixámos rapidamente os arredores e mergulhámos na periferia, com os nomes das estações — Campanhã, Contumil, Rio Tinto, Águas Santas, Ermesinde, Trofa, Lousado (que confundi com Lousada), Santo Tirso, Vila das Aves, Lordelo, Vizela — até chegarmos a Guimarães.
Na estação, atravessámos a sala ampla — bilheteiras, bar, casas de banho. Ironia das ironias: no comboio não havia, ali havia… mas mal cuidadas. Uma fila de senhoras formou-se de imediato; os homens, embora com a mesma urgência, não esperaram tanto. O cheiro a urina impregnado no chão e nos sanitários denunciava abandono e falta de zelo. Inexplicável. E não falo das casas de banho dos intercidades, para o texto não azedar de vez. Sim, a CP dá-nos os tais 50% de desconto por sermos seniores — uma benesse. Mas ainda tem muito caminho a trilhar para ombrear com as congéneres europeias.
E a paisagem? Prometi falar dela. Mas vou guardar para mim as imagens que imaginei do Vale do Ave; prefiro que fiquem intactas. A realidade, essa, mostrou casas mal implantadas, fábricas abandonadas, campos por amanhar e um rio Ave fatigado. Há trabalho pela frente — e muito amianto à vista.
Saímos
então da estação, nós, os forasteiros, e deparámo-nos com a
velha dúvida: esquerda ou direita? Sem sinalização evidente,
fizemos como faz quem está perdido: o dedo à boca, o ar a soprar, o
braço ao vento, qual cata-vento sem norte. Fomos pela esquerda —
hábito antigo que se entranha. Mais adiante, um letreiro pareceu
gozar connosco, indicando o centro no sentido inverso. «Assim não
vale», protestámos. Mas a Teresa, com o olhar atento que a
distingue, reparou noutra placa, mais discreta, quase escondida pelos
ramos.
E lá fomos pela direita.
Debaixo de um aguaceiro, percorremos a Av. D. Afonso Henriques e chegámos ao Largo do Toural, onde um mural proclama, firme: «AQUI NASCEU PORTUGAL». O berço. Aqui nasceu, em 1109, D. Afonso Henriques. O som dos sinos da Igreja de São Pedro ecoava no ar, anunciando o meio-dia com uma solenidade que parecia vir de outro tempo. O Largo é belo: casas iluministas restauradas, uma fonte moderna bem integrada, a Basílica de São Pedro — construída ao longo de 137 anos e ainda hoje à espera da segunda torre sineira, tão ao nosso jeito português. E, numa esquina, uma casa de ferragens antiga, onde a forja, o martelo e o fogo parecem resistir ao tempo.
Não vou descrever cada recanto visitado. Os guias fazem isso melhor. Quero apenas testemunhar o encanto de passear por uma cidade limpa, bem cuidada, acolhedora na comida e no trato, onde cada pedra, cada fachada e cada sombra conta uma história antiga.
Bem-haja
a todos os vimaranenses — homens, mulheres e autoridades — que
preservam a cidade sem a desvirtuar. É digna de visita de qualquer
português, e de quem vier de fora.
Saímos de lá com a vontade
simples e sincera de voltar.
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