segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

A SEDUÇÃO DA ORDEM - pensamento

 

Há algo que nos inquieta mais do que a ignorância: a amnésia voluntária. Pessoas que viveram o medo, a escassez e a arbitrariedade do poder — ou que cresceram à sombra dessas memórias — surgem hoje a defender ideias recicladas de autoritarismo, embrulhadas em slogans novos e vozes mais ruidosas. Como se o poço tivesse sido esquecido ou, pior ainda, romantizado.

Talvez não seja incoerência. Talvez seja cansaço. O cansaço de pensar, de duvidar, de sustentar a complexidade do mundo. Quando a realidade se torna excessiva, aparecem sempre os que prometem simplificá-la: dividir, apontar culpados, impor ordem. Não é novidade. Soljenítsin viu isso nascer no fundo dos campos — o momento em que o espírito, para não se partir, se convence de que a opressão é inevitável ou até necessária.

Inquieta-nos, por isso, a facilidade com que tantos jovens — e também menos jovens — se deixam enganar por mentiras repetidas ou, talvez pior, por meias-verdades cuidadosamente fabricadas. Por trás das redes sociais movem-se ideólogos discretos e interesses concentrados em poucas mãos, com um poder económico tão desmedido que chega a ser obsceno.

Essas plataformas, longe de serem neutras, alimentam o medo, o ódio, o racismo e a xenofobia, dividindo o mundo em campos opostos e simplificando a realidade até ao ponto da caricatura. O resultado é um terreno fértil para o enfraquecimento das democracias e para a aceitação gradual de formas modernas de autocracia.

Já não são necessárias fardas nem quartéis. O controlo faz-se pela repetição, pela vigilância difusa, pela manipulação emocional e pela dependência tecnológica. Não um chicote visível, mas um condicionamento constante. O mais inquietante talvez seja isto: a facilidade com que se abdica da autonomia em troca de conforto, pertença ou falsas certezas.

O mal, como se sabe, raramente regressa com a mesma farda. Volta disfarçado de solução. E quando a memória deixa de ser pensamento crítico, transforma-se — silenciosamente — em cumplicidade.

Nota:
Reflexão inspirada na leitura de O Arquipélago Gulag, de Aleksander Soljenítsin, e na observação do presente.

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