Há
algo que nos inquieta mais do que a ignorância: a amnésia voluntária.
Pessoas que viveram o medo, a escassez e a arbitrariedade do poder —
ou que cresceram à sombra dessas memórias — surgem hoje a
defender ideias recicladas de autoritarismo, embrulhadas em slogans
novos e vozes mais ruidosas. Como se o poço tivesse sido esquecido
ou, pior ainda, romantizado.
Talvez
não seja incoerência. Talvez seja cansaço. O cansaço de pensar,
de duvidar, de sustentar a complexidade do mundo. Quando a realidade
se torna excessiva, aparecem sempre os que prometem simplificá-la:
dividir, apontar culpados, impor ordem. Não é novidade. Soljenítsin
viu isso nascer no fundo dos campos — o momento em que o espírito,
para não se partir, se convence de que a opressão é inevitável ou
até necessária.
Inquieta-nos,
por isso, a facilidade com que tantos jovens — e também menos
jovens — se deixam enganar por mentiras repetidas ou, talvez pior,
por meias-verdades cuidadosamente fabricadas. Por trás das redes
sociais movem-se ideólogos discretos e interesses concentrados em
poucas mãos, com um poder económico tão desmedido que chega a ser
obsceno.
Essas
plataformas, longe de serem neutras, alimentam o medo, o ódio, o
racismo e a xenofobia, dividindo o mundo em campos opostos e
simplificando a realidade até ao ponto da caricatura. O resultado é
um terreno fértil para o enfraquecimento das democracias e para a
aceitação gradual de formas modernas de autocracia.
Já
não são necessárias fardas nem quartéis. O controlo faz-se pela
repetição, pela vigilância difusa, pela manipulação emocional e
pela dependência tecnológica. Não um chicote visível, mas um
condicionamento constante. O mais inquietante talvez seja isto: a
facilidade com que se abdica da autonomia em troca de conforto,
pertença ou falsas certezas.
O
mal, como se sabe, raramente regressa com a mesma farda. Volta
disfarçado de solução. E quando a memória deixa de ser pensamento
crítico, transforma-se — silenciosamente — em cumplicidade.
Nota:
Reflexão inspirada na leitura de O Arquipélago Gulag, de
Aleksander Soljenítsin, e na observação do presente.