sexta-feira, 8 de abril de 2022

UM TESTEMUNHO DE VIDA – O PODER DA FÉ

 

Neste tempo de Quaresma, marcado pela guerra entre Rússia e Ucrânia, e o conflito na Palestina/Israel, que nos conduz à Páscoa, talvez não seja despropositado compartilhar este testemunho de vida:

Eu tinha 17 anos, era maio, o mês de Maria, quando um colega, o Pedro, me disse: “Eu, João e o Aristides vamos a Fátima a pé, pagar uma promessa a Nossa Senhora por termos terminado o curso.”

Respondi: "Sou mais novo, ainda me falta um ano para terminar o curso e não fiz nenhuma promessa. Mas gostaria de ir com vocês a Fátima!"

Ao final do dia, o Pedro voltou e disse-me: “António, falei com João e o Aristides, e eles concordaram que tu vás connosco!”

Compartilhei este projeto com o Dr. Vitorino, um velho professor que também dava aulas de latim no Seminário dos Olivais, e disse-lhe: “… não fiz nenhuma promessa, mas mesmo assim gostava de ir.” Ele respondeu-me: “Não importa. O importante é a fé com que tu vais a Fátima. E, à noite, quando te deitares, oferece o sacrifício da tua caminhada a Nossa Senhora por um desejo muito forte que tenhas, ou em ação de graças ao Senhor pelo dia que te foi dado viver. Na hora da oração, saberás o que fazer. Não te esqueças, o mais importante é a sua fé em Nosso Senhor.”

Quando chegou a hora, numa tarde de maio, após o almoço, partimos. Na primeira noite da viagem, montamos a tenda encostada à parede da Igreja da Póvoa de Santa Iria. Os meus colegas foram dar um passeio. Eu preferi ficar, deitei-me sob um pano de lona, sentindo as irregularidades do chão, e rezei, seguindo o conselho do Dr. Vitorino. Ofereci o sacrifício da minha caminhada a Nossa Senhora de Fátima, pedindo-lhe a intercessão junto a seu Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo fim da guerra do ultramar. Já não por mim, mas para que um sobrinho meu, que acabara de nascer também em maio, não tivesse de ir à guerra.

A partir desse dia, todas as noites antes de dormir, rezava e entregava a Nossa Senhora o sacrifício da caminhada, fazendo-lhe o mesmo pedido.

Passados cinco anos, em 1973, fui para a guerra. Colocaram-nos na região no norte de Angola, No Songo. Quando chegámos ao quartel, logo à entrada, do lado esquerdo da porta de armas, havia uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, pousada na bifurcação de dois troncos de uma frondosa mangueira e, por abaixo, um pequeno altar. Era a capela do quartel. Sempre olhávamos para essa imagem quando saíamos para uma operação, pedíamos sua proteção, e quando voltávamos, agradecendo-lhe por termos chegado com vida.

No dia 25 de abril, também em maio, vim de férias à metrópole. Ao regressar à guerra, estava imbuído pelo espírito revolucionário que se vivia em Lisboa. Ao chegar, deparei-me com um quadro político-militar completamente diferente do que havia deixado. Os meus camaradas também estavam imbuídos pelo espírito do MFA. Decidimos, então, distribuir mensagens aos guerrilheiros da FNLA, propondo um cessar-fogo.

Eles receberam a mensagem e responderam. Fizeram uma emboscada ao responsável da OPVDCA e entregaram-lhe uma mensagem dizendo que queriam fazer o cessar-fogo connosco. Após o comandante-chefe em Luanda ser informado, fomos autorizados a falar com os chamados “turras”.

Embora sendo furriel, em tempos, fora designado como Comandante de pelotão. Fez-se um sorteio entre os comandantes de pelotão, e fui escolhido para ir falar com os guerrilheiros.

Num belo domingo de sol, reuni os homens do terceiro pelotão e expliquei a missão. Combinámos a estratégia de aproximação, posicionamento das viaturas, e recomendei que não levassem máquinas fotográficas nem gravadores (por ordem do Comandante).

No caminho, não parava de pensar: como seria o encontro com homens com quem ainda há poucos dias trocávamos tiros? Qual seria a reação deles? E a nossa? E o que eu diria ao Comandante Vuna Vioka da FNLA? Por mais que me esforçasse, não encontrava palavras que fizessem sentido para aquela ocasião...

Ao chegarmos, a tensão era muito alta. Sabíamos que eles já ouviam as viaturas. Olhávamos para as bermas da picada, atentos, esperando ver algum “turra” emboscado, mas não víamos nada. O peito apertava-se, provocando dor! O coração batia desordenadamente, tal era a tensão.

O povo do Penda apareceu no ângulo de visão da primeira viatura onde eu estava. No meio da rua, uma força militar fardada, em formatura e desarmada, causou-me surpresa e alívio. As viaturas pararam à distância combinada. Desci e dirigi-me ao Comandante.

Vuna Vioka apresentou-me aos seus homens em continência militar e, depois, de braços abertos, dirigiu-se a mim. Abraçamo-nos como amigos que há muito não se veem. Nesse momento, o povo do Penda começou a cantar e a dançar, numa explosão de alegria! Os militares de ambos os lados continuavam firmes.

O Comandante Vuna Vioka, ainda apertando minha mão, disse: “É uma grande alegria poder viver este momento!” Respondi meio atónito: “Também para mim!” Então ele perguntou: “Podemos mandar descansar os homens?” Concordei e demos ordem para que todos ficassem à vontade.

O que aconteceu em seguida foi inverosímil e inimaginável há cinco minutos: os militares portugueses e os guerrilheiros da FNLA correram uns para os outros, abraçando-se, trocando quépi, cumprimentando-se e dançando, numa alegria indescritível. Tudo ao som dos cânticos e danças do povo, sob os nossos olhares esgazeados. Era a festa da paz. Homens que há treze anos se confrontavam, ali estavam, como se sempre tivessem sido amigos!

Um arrepio percorreu o meu corpo, os pelos dos braços se eriçaram. Lembrei-me de Nossa Senhora e da peregrinação a Fátima, das orações pedindo o fim da guerra, oferecendo o sacrifício da caminhada. Ali estava eu, em Angola, acordando um cessar-fogo! Era o fim da guerra que se anunciava. Agradeci a Nossa Senhora e a Deus por aquela oportunidade. Foi um momento de grande interioridade espiritual, que consegui vivenciar no meio de tanta alegria.

Não houve tratados escritos, apenas um aperto de mão selou o acordo, válido para a região norte de Angola, na zona de influência da FNLA. Posteriormente, o cessar-fogo foi subscrito em reunião no Songo pelo Comandante do COPM e Vuna Vioka.

Já recompostos, os comandantes recordaram as últimas operações do exército na serra da Mucaba. Uma hora depois, despedimo-nos e regressámos ao quartel, em grande excitação e alegria. Alguns homens choravam, outros lamentavam não ter levado lembranças para os novos amigos guerrilheiros.

Irmãos, estou profundamente convicto de que, com muita fé, pedi a Nossa Senhora de Fátima, e ela escutou os meus pedidos, intercedendo junto a seu amado Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo, e Este a Deus. Ele quis que eu e meus companheiros estivéssemos ali, naquele momento, para selar um acordo de cessar-fogo e participar, à nossa humilde escala, no fim da Guerra no Norte de Angola. Deus nada faz por acaso.

"Esta é a vitória que vence o mundo – a nossa fé." 1 João 5:4

Abril, 2022
A.M.

 


[1] Organização Para a Vigilância e Defesa Civil de Angola.


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  “É O COMER QUE FAZ A FOME.   É O CORAÇÃO QUE FAZ O CARÁTER”                    Eça de Queiroz  Imagem: Internet