sábado, 28 de novembro de 2009

NOITE DE LUA CHEIA NO SERTÃO AFRICANO

                                 NUMA NOITE DE LUA CHEIA andava o terceiro pelotão algures na estepe africana, em mais uma operação de vigilância, tendo como objetivo último montar uma emboscada num ponto X, lá para os lados de Massarelos, logo ao amanhecer do dia seguinte. Enquanto caminhavam pelo capim depararam-se, várias vezes, com manadas de gazelas que pastavam descontraidamente! Animais muito elegantes, com uma locomoção tão graciosa que dava a impressão de não tocarem o chão! De orelhas espetadas que sacudiam a cada passo e de rabito sempre a dar, a dar. Finos como o coral e, quando se sentiam ameaçados, eram velozes na fuga, corriam como um tiro! “Tantos animais belíssimos para caçar e, nós, com armas não mão, sem as podermos utilizar para esse fim” pensavam.

Era proibido caçar, e muito menos no decurso de uma operação, mas que dava vontade de apanhar um bichinho daqueles, lá isso dava! “Umm… que bifes tão deliciosos se fazem destes animais”, pensava António enquanto caminhavam. Depois de se terem afastado razoavelmente dos locais pré-estabelecidos, montaram um perímetro de segurança e jantaram antes de escurecer completamente. Depois, já com a noite bem marcada, voltaram por outro caminho até ao alvo, onde se instalaram como acontecia sempre para dormir. O pessoal fazia um círculo e a segurança era feita em cruz, por quartos de sentinela, de duas em duas horas, obrigatoriamente, quem tinha medo não dormia e desta forma reforçava a vigilância. O dispositivo para a emboscada só seria montado de madrugada, ao romper da aurora.
Então o Cambalhotas, dedicado ‘guarda-costas (por sua livre e espontânea vontade)’ do furriel - que não tinha direito a tal mordomia -, disse-lhe:
– Furriel, vou fazer-lhe uma palhota para não apanhar cacimbo!
O graduado olhou para o soldado meio distraído, sorriu e nem respondeu. Mas, no centro do círculo, já o soldado abraça uma quantidade de capim, amarrando-o em cima com algumas ervas secas que apanhara e, depois, de joelhos, foi furando o cone de palha rente ao chão, por fim, uma vez lá dentro, rebolou-se ora para um lado, ora para o outro, até achar que a cama estava concluída; ficou uma casota cónica parecida com a dos índios. António, agradeceu e depois de deitado apreciou a palhota e o que se observava de dentro dizendo para si: “O rapaz tem jeito, embora mais pequena que a dos índios é, contudo, abrigada e até acolhedora! E que linda e serena noite de lua cheia está…” - reparava, agora mais descontraído. Embalado por um certo bem-estar que, apesar de tudo, sentia, deixou-se levar ao sabor dos pensamentos e lá estava ele, deitado de costas, dentro da novíssima habitação de altíssimo padrão ecológico a ver, pela ombreira da porta em forma de triângulo, a Lua, enorme com uma dimensão e uma cor de um amarelo forte afogueado (talvez uma superlua), com sulcos negros a marcarem a sua face e parecia querer dizer-lhe: ‘Boa noite! Podes dormir descansado, porque esta noite velarei por ti!’; e, envolta por um manto salpicado por mil, um milhão, triliões de estrelas cintilantes, maioritariamente azuis, mas, aqui e além algumas vermelhas, outras amarelas e, até lhe pareceu, ver algumas, poucas, verdes. Uma verdadeira rainha num firmamento negro como breu; esmagava-o com o poder da sua energia, não lhe deixando outra alternativa que não fosse a de a observar e contemplar. Lá estavam, ele e os seus camaradas, à espera dos turras. Contudo, desejoso de que eles não aparecessem, fascinado pela força e beleza com que a natureza se expressava, às tantas, lá longe, vindo das profundezas do sertão angolano, ouviu-se um suave e agradabilíssimo rufar de tambores, naquela noite que, para ele, já se tornara encantada!
E continuando o militar a divagar nos seus pensamentos, que brotavam sem cessar, ocupando-lhe o cérebro, pensou que talvez o inimigo se tivesse decidido juntar-se à magia daquele momento e os tivesse querido presentear com mais outro extraordinário espetáculo - certamente um batuque -  continuando deitado de costas, desejou que aquele momento nunca mais terminasse e deixou-se extasiar, hipnotizado por tão especial noite e entrou em meditação contemplativa:
“Isto é a África no seu misterioso esplendor noturno. Decerto o inimigo não nos irá estragar este momento poético, quase divino! Sim divino. Porque a natureza é, mas aqui mais acentuadamente, algo que se mistura com o sagrado. A pureza da força selvagem africana, a sua beleza natural e em grande parte intocada é esmagadora. Toca-nos profundamente, de tal forma que nos eleva a um estado de espírito que só tem equivalência com o que sentimos quando nos entregamos à contemplação profunda e, enquanto religiosos, à conversa com Deus - à oração. “É por isto que acredito, que o inimigo por aqui não passará, hoje”.
 E assim se deixou ficar a observar a paisagem noturna, selvagem e grandiosa que, de tão bela e pacífica, lhe parecia irreal… Continuou de olhos abertos sentindo uma leveza de espírito e uma sensação de paz e de prazer infinitos, até que às tantas se voltou para lado esquerdo e adormeceu profundamente.
De manhã um raio de sol da cor do ouro, entrou pelo triângulo que fazia de porta à improvisada cabana, banhando-lhe o rosto enchendo-o de luz acordo-o.
António enquanto se espreguiçava encheu os pulmões de ar, ar perfumado pelo orvalho da manhã que incorporava os cheiros do capim e da pacaça[1] que por ali abundavam.
Este jovem, acabara de registar mais um dos fortes sentidos africanos - o cheiro -, lembrou-se então das emoções extraordinárias que sentira na noite que ora terminara e pensou que, apesar da guerra, era um homem com sorte por ter vivido mais aquela inolvidável experiência.
De facto, ele, nunca como naquela noite, tinha interagido tão fortemente com a natureza. Todos os seus sentidos: a visão, o olfato, o ouvido e o taco estiveram em alerta constante, numa permanente simbiose com a natureza, onde sentia, sem margem para dúvidas, ter sido, ele, o mais beneficiado.
Depois de tantas e tão deliciosas emoções, o furriel mandou os homens posicionarem-se para a emboscada, e, lá, de rabo para o ar e de cabeça encostada ao chão, olhos e ouvidos perscrutadores aguardaram, em alta tensão, a eventual passagem do inimigo.
Como o inimigo não aparecera até às doze horas, o furriel disse ao homem do rádio para comunicar com o alferes a pedir instruções. Recebeu ordem para se retirar e juntar-se ao segundo pelotão - também em operação nas redondezas -, no caminho, recordou novamente a noite anterior, já então com uma ponta de nostalgia. E, de repente, lembrou-se, surpreendido, que o inimigo não tinha passado por lá - embora a probabilidade de eles passarem por aquele lugar fosse sempre inferior a cinquenta por cento, disse para si: “O importante é que eles por aqui não passaram. Mas nem podiam ter passado, depois de uma noite tão mágica e com a Lua a fazer-nos de sentinela!”.
Imagem: Internet 



[1] Um ruminante que é metade boi e metade cavalo-boi na cabeça e cavalo nos quartos traseiros.
Descrito no ‘Dicionário Editora’, Porto Editora Lda. 6ª edição, como: «mamífero ruminante, bovídeo bufalino, africano, frequente em Angola, que é caça muito apreciada».

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