O terceiro pelotão caminhava pela vasta estepe africana em mais uma operação de vigilância. O objetivo era montar uma emboscada num ponto X, próximo de Massarelos, ao amanhecer do dia seguinte. Enquanto caminhavam pelo capim, cruzavam-se repetidamente com manadas de gazelas a pastar descontraídas. Eram animais elegantes, de locomoção tão graciosa que pareciam flutuar sobre o chão. De orelhas espetadas e caudas a abanar, eram esguios como corais. Ao menor sinal de ameaça, corriam rápidos como um tiro. Embora o desejo de os caçar pairasse na mente dos soldados, sabiam bem que as armas não podiam ser usadas para esse fim.
Ao afastarem-se dos
locais pré-estabelecidos, montaram um perímetro de segurança e jantaram antes
do escurecer completamente. Depois, voltaram por outro caminho até ao ponto da
emboscada, onde se prepararam para descansar. Formaram um círculo de segurança,
com sentinelas que alternavam a cada duas horas. O dispositivo para a emboscada
só seria montado ao romper da aurora.
Foi então que o cambalhotas,
“guarda-costas” do furriel, como gostava de se auto-intitular, propôs:
"Furriel, vou fazer-lhe uma palhota para não apanhar cacimbo!"
O graduado sorriu, mas não respondeu. Cambalhotas, sem esperar, começou a
erguer uma estrutura rudimentar de palha para proteger o graduado do frio,
usando uma habilidade inata que transformava um punhado de capim e ervas secas
numa cabana cónica, semelhante às dos índios.
O furriel agradeceu e,
depois de se deitar, apreciou a palhota e o que se via lá de dentro, murmurando
para si mesmo:
"O rapaz tem jeito! Embora mais pequena do que as dos indígenas, é um
abrigo acolhedor! E que noite linda e serena de lua cheia..."
Sentiu-se invadir por uma sensação de bem-estar, como se a natureza o enchesse
de paz, e entregou-se de pensamentos enquanto olhava, pela ombreira triangular
da porta, para a Lua – enorme, amarelada, quase afogueada (talvez uma superlua-cheia),
com sulcos negros a marcarem-lhe o rosto. Era como se ela lhe sussurrasse: "Boa
noite! Dorme descansado, pois esta noite velarei por ti."
Lá fora, um manto de
estrelas cintilantes, maioritariamente azuis, mas também com algumas vermelhas,
amarelas e, aqui e ali, até verdes, acompanhava a majestade lunar, rainha de um
céu negro como breu. A energia e a beleza esmagadoras da noite não lhe deixavam
alternativa senão contemplá-la. Ali estavam ele e os seus camaradas, aguardando
os "turras" e, ao mesmo tempo, desejando que não aparecessem,
enfeitiçados pela grandiosidade da natureza.
Por volta da meia-noite,
lá longe, vindo das profundezas do sertão angolano, começou a ouvir-se um suave
e agradabilíssimo rufar de tambores, como se o inimigo, subitamente pacífico,
decidisse contribuir para a magia daquele momento.
"Talvez até nos estejam a presentear com mais um espetáculo associando-se àquela
deslumbrante noite ... um batuque."
Deitado de costas, desejou que aquele instante durasse para sempre. Extasiado,
deixou-se embalar numa espécie de meditação contemplativa:
"Isto é África no seu esplendor noturno e misterioso. Decerto o inimigo
não irá estragar este momento poético, quase divino! Sim, divino... porque a
natureza é, aqui, mais do que em qualquer outro lugar, algo misturado com o
sagrado. A força selvagem, as belezas intocadas deste lugar esmagam-nos e
elevam-nos a um estado de espírito quase de oração."
Sentiu que, por isso
mesmo, o inimigo jamais passaria por ali naquela noite. E assim ficou a
observar a paisagem grandiosa e selvagem que, de tão bela e pacífica, lhe
parecia irreal... Os seus olhos permaneceram abertos, sentindo uma leveza de
espírito, uma paz e um prazer infinitos, até que, de repente, se voltou para o
lado esquerdo e adormeceu profundamente.
De manhã, um raio de sol
dourado entrou pelo triângulo que fazia de porta na improvisada cabana,
banhando-lhe o rosto e acordando-o. Espreguiçando-se, encheu os pulmões com o
ar fresco da manhã, perfumado pelo orvalho que absorvera os cheiros do capim e da
pacaça, animal abundante naquela região.
Aquele jovem militar
registava mais uma memória profunda da África, desta vez através do olfato, e
recordou, então, as emoções extraordinárias da noite anterior. Pensou que,
apesar da guerra, era um homem com sorte por ter vivido uma experiência tão
inolvidável.
Na verdade, nunca se
sentira tão ligado à natureza como naquela noite. Todos os seus sentidos —
visão, olfato, audição e tato — haviam estado em alerta constante, numa
simbiose plena com o ambiente. Sentia-se o grande beneficiado daquela comunhão.
Depois de tantas e tão
intensas emoções, o furriel ordenou que os homens se posicionassem para a
emboscada. Ali, deitados no chão com olhos e ouvidos atentos, aguardaram em
alta tensão a possível passagem do inimigo. Como o inimigo não aparecera até ao
meio-dia, o furriel mandou que o homem do rádio contactasse o alferes para
pedir instruções. A ordem foi para se retirarem e se juntarem ao segundo
pelotão, que operava nas redondezas.
A caminho, lembrou-se
mais uma vez da noite anterior, agora com um toque de nostalgia, e
surpreendeu-se ao perceber que o inimigo, de facto, não havia passado. Embora
as probabilidades de eles aparecerem ali fossem sempre inferiores a cinquenta
por cento, pensou para si:
"O importante é que eles não passaram. Nem podiam ter passado, depois
de uma noite tão mágica, com a Lua a velar por nós como sentinela."
A.M.